quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A Terceira Dimensão Intelectual

ou "Como Aprendi a Parar de Me Preocupar e Amar a Obra"

 (Antes de mais nada, devo dizer que este post foi inspirado no trabalho de meu crítico cinematográfico favorito, Pablo Villaça, do portal Cinema em Cena - daí o grande número de referências ao cinema. Que seja uma humilde e indigna homenagem ao seu trabalho e talvez uma ferramenta para as pessoas entenderem que críticos - à exemplo dos comunistas - não comem criancinhas no café da manhã.)
O Apedrejamento

"Como um crítico não consegue rir disso?"
Se eu ganhasse dez centavos para cada vez que eu ouvi que "tal crítico não sabe nada", eu poderia tomar banho de dinheiro no melhor estilo Tio Patinhas. Mas atire a primeira pedra quem nunca sentiu o sangue ferver ao ver uma crítica negativa de um filme, livro ou outra obra qualquer de seu gosto.

A crítica (seja literária, cinematográfica, televisiva ou qualquer outra forma de arte) é uma atividade ignorada ou pouco apreciada pelo grosso da população. O que pode parecer natural - afinal, o sujeito comum que, sentado no sofá num domingo à tarde, rola de rir ao ver Rob Schneider com trejeitos femininos em Menina Veneno,  com certeza acha que o crítico que massacrou o filme não tem senso de humor. Ou a adolescente, indignada pelos comentários cáusticos sobre os filmes da franquia Crepúsculo, não poupa palavras ásperas sobre um crítico em seu site, blog, Twitter e aonde mais puder encontrar o pobre infeliz.

Mas o que o grande público (e não só eles como uma parcela dos auto-intitulados "inteligentes") não compreende (e nem tenta compreender) é o real papel do crítico, e a noção completa do que é arte e como ela nos influencia. E vamos facilitar a sua e a minha vida com uma metáfora.



O Teatro Circular

O Teatro Circular: somente um lado?
Imagine um grande teatro circular, com um palco bem ao centro e cadeiras espalhadas em fileiras cada vez mais altas, de forma muito similar a um estádio de futebol. Bem no centro, sobre o palco, há uma grande escultura, alta e larga e bastante complexa. As pessoas devem então entrar no teatro, sentar-se em uma cadeira e apreciar a escultura.

Agora, notam algo de anormal nessa cena?

Não é difícil perceber que cada pessoa sentada em sua confortável cadeira vai ter uma visão direta da escultura, mas somente vai perceber uma pequena parte dela. Aliás, cada pessoa dentro do teatro vai ter uma visão diferente da escultura. Você verá exatamente o que está exatamente à sua frente, mas não vai ter noção de como é o resto da escultura. Claramente uma experiência incompleta.

O que fazer? O que é natural, se levantar e circular pelo teatro, para ver a escultura de outra posições e "entendê-la" totalmente. Bem simples e intuitivo, correto? Mas ao aplicar essa metáfora, vemos que não é dessa forma que as coisas acontecem.

Toda obra, desde um filme blockbuster de Hollywood até um conto despretensioso em um blog obscuro não tem uma única forma de ser entendido (ou não deveria, mas chegaremos nesse ponto). Toda a história tem detalhes, nuances e subtextos que nem sempre são visíveis imediatamente - é preciso um esforço por parte do receptor para visualizar esses detalhes. Em um exemplo prático e simples, muitas pessoas se divertiram com a ação de Homem de Ferro, mas um grupo menor de pessoas compreendeu a sutil crítica feita à política armamentista dos Estados Unidos.

Esse é o levantar da cadeira para olhar de um outro ponto do teatro. Deixar de ver tão somente o que está a sua frente e tentar ver o que mais está dentro dessa obra."Mas por que eu não posso simplesmente aproveitar a minha vista ao invés de ter que ir atrás de outras?" pergunta o homem comum. Por um pequeno detalhe.

Maior do que a Soma das Partes

"Você vai comer isso?"
Creio que todos vocês já assistiram a animação Ratatouille, da Pixar (e se não o fizeram, ou perderam qualquer outra animação desse estúdio genial, vão lá e façam isso agora). Devem se lembrar que logo no começo do filme o rato Remy explica ao seu irmão Emile sobre como ele sente os sabores. Ele sente um sabor delicioso de uma comida e depois prova outra igualmente saborosa, mas diferente. Mas quando ele junta esses dois ingredientes, o sabor resultante é, de alguma forma, muito melhor do que a simples soma dos dois.

Uma obra artística também funciona dessa forma.Quando você entende mais de um aspecto da obra e percebe como eles se interligam, ela parece maior do que realmente é. Voltando ao exemplo anterior, você assiste o filme Homem de Ferro, você espera ver um filme de super-herói, com ação, um tanto de humor e mais alguns elementos comuns nesse tipo de produção. Mas quando você percebe a referência ao problema armamentista do mundo real e como ele faz sentido dentro da trama, aquela história, por mais irreal que poderia ser, fica mais verossímil. Mesmo sendo um simples "filme de super-herói". É quando a obra se torna maior do que realmente é.

Terceira dimensão: um gosto de realidade.
Outra forma de entender o quão fascinante pode ser abrir sua mente para outras leituras de uma obra é a recente popularização da tecnologia 3D no cinema. Oras, não há como negar o quão fascinante é ver um personagem quase saltar da tela em uma cena. Mas o que é exatamente uma imagem em 3D? Nada mais do que a mesma imagem chapada, com pequenas diferenças no ângulo de visão de cada olho. Dessa forma, seu cérebro tem a impressão que aquilo é real, tem volume e está bem diante de você - mesmo sendo apenas duas imagens planas simples.

E é exatamente esse conceito uma das pedras fundamentais da crítica. O papel do crítico é dar a volta no teatro e admirar a obra de todos os ângulos possíveis, perceber esse efeito. E esse "dar a volta" também implica em sair da sua própria realidade; muita gente faz piadas que críticos adoram "filmes dramáticos iranianos", mas tente uma única vez sair de sua zona de conforto, despir-se de preconceitos, e assistir um filme como A Cor do Paraíso, por exemplo. A experiência pode te surpreender.

Mas também temos o outro lado do espectro, que torna a crítica tão infame: o papelão.

Figura de Locadora

Um fantasma atrás da cortina? Não, só uma figura de papelão.
Vamos voltar rapidamente ao exemplo do Teatro Circular. Assumam que, embora o teatro seja circular, toda as entradas se localizem em um único ponto. As pessoas devem entrar e então assumir os lugares - que ainda para o efeito da metáfora, sempre serão muito superiores ao número de pessoas. Dessa forma, cada espectador tem total liberdade para escolher aonde se sentar. Aonde as pessoas irão dar preferência a se sentar?

A grande maioria vai se sentar o mais próximo possível de onde entrou - afinal, fica mais fácil para sair depois, certo? Traduzindo, as pessoas vão procurar extrair da obra aquilo que está mais próximo delas. Por isso uma parcela muito grande das pessoas não presta atenção aos "níveis" da mesma - porque é mais cômodo se ater aquilo que você conhece.

Eis que temos o homem de negócios, que ganha dinheiro com uma obra. Ele tem que investir seu tempo e dinheiro em algo; ele irá escolher uma obra multi-facetada correndo riscos (sim, vale dizer que não é fácil fazer criar um material com profundidade, existem sim obras ruins com essa característica), ou ele vai seguir uma fórmula simples, bem testada e de retorno garantido? Não é difícil de escolher.

Nesse naipe temos comédias repetidas, filmes de ação vazios, séries de televisão com o mesmíssimo formato de outras, e por aí vai. Voltando ao nosso exemplo do teatro, é como se a obra fosse na verdade uma figura feita em papelão, igual a uma propaganda de locadora de filmes. A maior parte do pessoal vai se sentar de frente e admirar a imagem de frente, se divertir com a fórmula pronta. Mas qualquer um que se disponha a circular pelo teatro (e aí temos os críticos), vai perceber que aquilo é chapado, vazio, sem qualquer interesse maior que uma figura plana.

Esse é o pomo da Discórdia; a visão de um crítico, por talento ou por hábito, procura sempre ver além do que a maior parte do público vê. Ele não vai se deixar levar por apenas uma simples figura no papel.

"Então", pergunta o receptor comum "eu tenho me divertido de forma errada?"

O Meu e o Seu

O olho é parecido, mas o ponto de vista é outro.
Vamos voltar mais uma vez na metáfora. Tendo a noção de que a obra tem vários ângulos e formas de ser vista, a única forma de entendê-la completamente seria admirá-la de todos os locais possíveis do teatro, correto? Sim, se isso fosse possível. A bem da verdade, quase ninguém teria a disciplina, paciência e empatia necessárias para "experimentar" todos os pontos de vista de uma obra. Mesmo os críticos fazem um esforço para entender o máximo possível, mas isso pode não ser sempre viável. Por que?

Porque os pontos de vista dependem muito de experiências pessoais. Um bombeiro vai ter uma visão sobre um filme ou livro contando uma história de bombeiros muito diferente de uma pessoa comum. É isso que faz com que algumas pessoas gostem de uma obra ou não; elas avaliam sempre com base em sua própria experiência de vida - ou, se preferir, sempre da parte do teatro circular aonde se sentem mais à vontade.

Isso também explica o porquê de tantas obras "direcionadas" a um público, como Crepúsculo por exemplo. Uma pessoa jovem tem uma visão de mundo - guardadas as devidas proporções - restrita e conhecida, e em geral não teve a vivência mínima para olhar com um pouco mais de profundidade e "perceber outros níveis" de um filme, série ou livro.

Daí nasce a famosa "regra dos quinze anos" (para quem não conhece, se você viu um filme, leu um livro ou qualquer coisa antes dos seus quinze anos, não reveja depois de adulto, pois a chance de se decepcionar é imensa) - mesmo involuntáriamente, nós ganhamos a habilidade de olhar outros pontos de vista, mesmo minimamente. É algo natural, mas também pode ser adquirido. Basta um mínimo de mente aberta de boa vontade.

Um Ponto de Equilíbrio

Uma única ressalva que eu talvez faria a alguns críticos é que sempre vai haver o receptor que diz "eu estou confortável em minha cadeira, quero ficar por aqui". E isso, por mais que pareça alienígena do ponto de vista de um crítico, é uma escolha dele. Existem pessoas que simplesmente gostam da cara do Rob Schneider, acham graça em suas caretas e ponto. E se ele se sente feliz com isso, não há nada de errado. Sei que grande maioria dos profissionais entende isso (e tem a noção que essas pessoas simplesmente não vão lhe dar atenção), mas um ou outro caso acaba mostrando ressentimento e zombando de pessoas que optam por essa "filosofia" - e isso só serve para denegrir ainda mais a tão surrada imagem do crítico.

E minha última mensagem ao receptor é para demonstrar alguma empatia. Um crítico não é um inimigo mortal da diversão, é tão somente alguém cujo trabalho é lhe mostrar um ponto de vista - na verdade, vários deles. Acreditem, uma crítica ruim não vai prejudicar um trabalho artístico que lhe agrada (para o bem ou para o mal, a única coisa que vai atrapalhar qualquer obra, desde sempre, é a falta de dinheiro). E ao invés de levantar uma pedra (ou, nos tempos modernos, comentar um blog ou responder um comentário no Twitter), pare um pouco e preste atenção no que foi dito. Tente minimamente dar uma segunda olhada.

Você pode encontrar um mundo totalmente novo bem diante de seus olhos.

3 comentários:

  1. Ótimo post. Tem muita gente que não entende que pessoas tem opniões,ou como vc colocou, "Visões" diferentes umas das outras e por consequencia ninguém está certo ou errado.Particularmente não me deixo influenciar por uma crítica boa ou ruim de algum filme que quero assistir. mesmo que crítico A ou B tenha achado ruim,eu sempre procuro assistir para ter minha própria opinião. Assim como nos reviews(não gosto muito da palavra "Crítica") que faço no Blog. Sempre procuro deixar claro que é minha opinião e não sou dono da verdade. independente de falar bem ou mau de um filme sempre aconselho as pessoas a irem ver e aí sim discordarem.
    Vamos usar o Omelete como exemplo: pegue ua das críticas de lá e leia os comentários: quase todos se dividem entre: ah! Se vc não gostou eu também não vou ver" e " Vc é não gostou do Filme? Então é bobo, feio e tem cara de mingau" Qual a dificuldade em respeitar gosto alheio? o que devia importar não é o que a pessoa acha sobre determinado assunto? o que me importa se Críticos gostaram ou não? se vc foi ao cinema(ou Teatro ou leu livros etc) e gostou da experiencia é o que importa. Eu não gostei de batman cavaleiro das Trevas mesmo com 99,94 das pessoas dizendo que ele é maravilhoso. Agora o fato de eu não gostar vai fazer alguém gostar menos da obra? Não né?
    Enfim. Abraços o/

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  2. Belo post!
    Claro, gostoso de ler e bem explicativo para aqueles que não entendem essa nossa "necessidade" de ficarmos dando voltas e mais voltas ao redor do palco.

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  3. Bom texto, Tiago. Todos temos que aprender isso com relação ao gosto alheio. Podemos tanto dar aquelas voltinhas no palco quanto ficar naquela parte da platéia admirando os peitões daquela estátua... Ehehehehehe...

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