quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Conto: Reflexões - Parte 002

Segunda parte da história. Agora sim as coisas começam a ficar interessantes.



E tudo começou tão inocente como poderia ser, obviamente numa quinta-feira. Além da galera de sempre, o Abreu do Comercial e a Janete, a nossa secretária (que era quase um "mano" da turma, sem frescura nenhuma), bebiam com a gente já havia uns quarenta minutos. Às seis em ponto, feito Ave Maria, chega o Batoré esbaforido e suado, entregando o carro pro manobrista.



- Podem segurar os sete gatinhos, que o Seu Noronha chegou. - exclamou o Carlão, não só pra nós, mas pra todo mundo dentro do Santa Distinta. Batoré emendou enquanto se sentava.

- Pois eu quero saber quem desenhou "querelinhos" voadores na parede do banheiro! - seguiu-se um riso coletivo quando o Rei, que nem tinha aberto a boca até agora, apontou pra televisão.

- Pois olha lá o maior de todos.

Todos se viraram pra ver a tela e a gargalhada foi geral quando vimos que era uma reportagem sobre o Arara Azul.

Ter habilidades especiais e poderes podia não ser pra todo mundo, mas sempre me pareceu mais comum do que seria saudável. Cair num tanque de gororoba radioativa, encontrar alguma roupa alienígena maluca ou simplesmente nascer mutante - opções não faltavam. Mas sabe lá Deus o que leva um fulano a vestir uma roupa colante colorida e sair pelas ruas, seja pra roubar ou pra pegar ladrão. O caso é que os gringos adoravam essa ideia; Homem-Aranha, Capitão América, X-Men... depois eles vêem acusar a gente de ser o país do Carnaval. Isso era o tipo de coisa que não pega no Brasil. É claro que existem super-humanos por aqui. Todo mundo sabe que mais de um adolescente fugiu de casa depois de virar o cachorro da família pelo avesso, ou que alguns traficantes colocam gente com poderes pra combater a polícia. Mas desfilar com uma roupa berrante pra cima e pra baixo quase não era visto. Com a honrosa exceção do Arara.

Arara Azul. Identidade verdadeira; obviamente desconhecida - até ele tinha bom-senso e vergonha na cara suficiente pra ficar na surdina. Mas deixando as piadas de lado, ele provavelmente não teve lá muita opção quanto ao seu modus operandi. É muito difícil ocultar uma aura em centenas de tons azuis brilhantes de uns três metros de raio, especialmente voando pelos céus. Os especialistas que cansaram de dar entrevistas pra trocentos programas, jornais e revistas tinham como seu melhor palpite que o poder dele era um "campo de força biológico de alta potência e extremo controle". Na boca do povo ele simplesmente parecia um tremendo destaque de escola de samba - exceto que este destaque voava e tinha "tentáculos" de luz capazes de jogar um caminhão longe. Como mal se via o contorno de seu corpo em meio aquela mistureba de luzes, ninguém sequer tinha certeza se ele era jovem, velho, alto, baixo, ou mesmo uma mulher - embora sua voz soava masculina quando ele se dirigia à alguém.

Mas apesar da tiração de sarro geral, muito pouca gente desgostava do Arara. Oficialmente ele era um fora da lei (vigilantismo nunca foi legalizado no Brasil), mas nenhum policial faria qualquer esforço para detê-lo. Seu comportamento sempre fez juz à alcunha de herói, desde evitar um pequeno assalto até conter uma grande enchente salvando centenas de vidas. E tudo isso sem nunca - ao menos publicamente - ter chegado a menos de quinze metros próximo do chão.

Mas pra tirar sarro e dar risada no bar, todo mundo sabe que vale qualquer negócio.

- Porra, o Rei fisgou certo de novo - falou o Carlão depois que todos desviaram a atenção da televisão. - Já pensou aquela garotinha virgem, em sua noite de nupcias, abrindo a braguilha e encontrando uma aberração azul dessas?

- Pois é - continuou Batoré, como se fosse um jogral - daí ela liga pra mãe e pergunta 'Nossa mãe, o troço é assim tão esquisito?' e a mãe diz 'Esquisito como minha filha?' e a filha responde 'Eu baixei o ziper e esse voou de verdade'!

Depois de mais algumas risadas, o Abreu emendou:

- Falando sério galera, o cara tem uma tremenda boa intenção, mas não dá uma vergonha desse bibelô de elefante?

- Rapaz, eu tenho mais vergonha é dos políticos lá em Brasília. - respondeu o Laurindo bebericando uma cachaça artesanal. - Quem vai falar qualquer coisa dele? Os gringos é que não.

- Meu, os caras devem enrolar até pra falar "Arara Azul" em português. - emendou o Carlão filando uma azeitona do aperetivo. - Ou traduziram o nome do pobre-diabo. Fala aí, Veríssimo? Como é que os caras chamam o "querelhinho" azul lá nos "states"?

- Até aonde eu sei - respondi puxando de memória - os jornais de lá, quando falam alguma coisa, chamam ele de "Blue Bird". Cara, uma tradução típica do Patrão.

O Batoré e o Frescalhão riram. As traduções dos nomes de vigilantes mascarados americanos feitas pelo jornalismo do SBT eram a piada recorrente no país inteiro. Coisas como chamar o Daredevil de Demolidor só pra manter o duplo "D" do uniforme do cara eram hilárias. Eu lembro que por diversas vezes a Globo e outras redes tentavam emplacar suas próprias traduções, mas entre o povão só marcava o que a rede do Patrão veiculava. Reza a lenda que várias dessas traduções esquisitas eram ordenadas pelo Silvio em pessoa - e eu não duvido, não. O cara, de alguma forma, sabe o que faz...

- Ôôô, Veríssimo, mas não teve uma heroína de lá que chamava Bluebird? - perguntou o Frescalhão - Acho que andava com o Aranha...

- Sei lá, cara! Desde quando eu sou especialista em gringos baitolas fantasiados? Eu só calho de ler os jornais na net e bater o olho nessa papagaiada, cara. - retruquei dando uma pancada no ombro dele.

- Ah, cara - disse o Carlão - você é o único por aqui que lembra o nome de mais de três presidentes; é tua obrigação saber essas coisas.

- Ah, tá bom. Cara, saber quem foi o fulano que governou teu país e botou na sua bunda por quatro anos é uma questão de experiência. Ou você quer botar outro Collor lá no Planalto? - fiz uma pausa pra bebericar a cerveja.- Agora vou lá eu me interessar em um fulano com a cueca pra fora da calça desfilando por aí? Se fosse eu com poderes, talvez até me interessasse em saber.

- Cara, se boa? - interviu o Rei pela segunda vez na noite - Melhor coisa que você faz é realmente isso: tocar a vida. Aposto que a maior parte desses babacas queria era não ter dor de cabeça e tomar uma cervejinha com os amigos.

- Ah, é que eu não nasci com essa porra, ô Rei! - disse o Carlão em tom sonhador. - Senão vocês iam ver. Já viu a quantidade de gata que o tal do Tocha Humana cata? E sem segredinho, sem boiolagem, só no luxo e no estilo. E ainda sobra um tempinho pra salvar o mundo. Fala aí Janete, imagina eu de Tocha Humana!

- Certeza que eu dava pra você! - completou a secretária em brincadeira, mas um discreto brilho no olhar enquanto a galera ria e uivava. Eu já imaginava que a cabeça da esposa do Carlão ia pesar de novo...

E o papo seguiu nesse tom noite adentro. Eram quase nove e meia quando o Batoré decidiu voltar pra casa deixando o Rei e eu pra fechar a mesa. O resto da galera já tinha ido embora aos poucos - o filho da puta do Carlão deu carona pra secretária, claro.

Como o Rei costumava ir de ônibus e morava no meu caminho de casa, era comum que ele voltasse de carona comigo. Ele ficava um pouco mais a vontade para conversar nessa hora - não sei se ele ia mais com a minha cara, ou se simplesmente ficava envergonhado de pegar carona e não abrir o bico.

Me lembro que discutiamos algo sobre séries de televisão, uma afinidade mútua. O trânsito pra São Bernardo estava uma merda ainda pior do que a habitual, então eu estava cortando por um bairro.

- Ôô, Veríssimo, vai pela Pereira Barreto mesmo, cara. Sem pressa de chegar em casa. - disse o Rei meio apreensivo.

- Relaxa, Rei, já cortei caminho por aqui mais de uma vez. O bairro parece suspeito, mas é de boa. Mas voltando, cara, você realmente curtiu E.R.? Mesmo depois que saiu todo o cast original e virou aquela lambança?

- Ah, era divertido! Quase como se fosse "novela de homem", saca? E você não se lembra de Grey's Anatomy nessas horas, né?

- Ah, mas você tem que entender que... PUTAQUEOPARIU!!!

Me lembro muito pouco dos detalhes dos segundos seguintes, exceto que eles pareceram dias. Só lembro do paralelepípedo no meio da rua, a freada e vidro quebrado. Demorou alguns dias pra, junto com as memórias do Rei, entender que, ao desviar o carro daquela merda no meio da rua, o carro inclinou nas duas rodas do lado e quase tombou, mas foi salvo disso ao bater a lateral em um poste, estourando o pára-vidro no processo.

Mal tinha me dado conta que nenhum de nós tinha me machucado quando ouvi a gritaria fora do carro.

- Desce, filho da puta!!

- Sai do carro logo! Sai! Sai! Os dois, no chão!

Eram dois bandidos armados. Não consegui memorizar suas feições, mas mesmo no escuro era possível ver o jeito nervoso, inseguro, e os olhos extremamente vermelhos. Nóias. Cheirados de tudo. Tremi de medo, porque minha vida de repente não valia porra nenhuma, nem se entregasse tudo.

Desci do carro devagar com as mãos na cabeça. Vi com o canto de olho que o Rei fazia o mesmo, mas não tinha coragem de me virar pra ver. Os dois filhos da puta não paravam de gritar, mais balbuciando do que falando. Tudo o que eu entedia ali era "grana" e "tudo". Levei a mão à carteira o mais calmamente que pude, os dedos trêmulos e suados escorregando. Eles gritavam cada vez mais alto, então estaquei.

Foi quando ouvi o clique e o disparo.

Passou-se um tempo muito longo - provavelmente uns três segundos - quando me dei conta que estava vivo. A gritaria tinha parado, os dois nóias estavam parados com os olhos arregalados, as armas abaixadas - mas ainda nas mãos, que estavam mais trêmulas que as minhas. Olhavam para onde estava o Rei, então finalmente tomei coragem e virei o pescoço.

O Rei estava em pé, parado. E sua pele reluzia como metal.

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