domingo, 6 de fevereiro de 2011

Conto: A Cova

Esse conto também é mais antigo (daí também eu achar ele mais "cru" que os mais recentes), eu escrevi para uma antiga lista de discussão sobre literatura aonde trocávamos nossas criações. Esse é um pouco mais o meu nicho, o terror - embora ele tende mais para o lado de angústia do que de "sustos".



Jovens pés desnudos tocavam o solo úmido e escuro como seda roçando em um antigo tapete. A longa túnica branca arrastava-se lentamente por entre pedras e galhos podres. A lua minguante emprestava seu brilho tosco aos olhos dela, olhos azuis como dois brilhantes diamantes em uma caverna escura. Seu alvo rosto infantil, entrecoberto pelos louros cabelos cacheados, estampava uma sinistra paz enquanto as lápides de mármore branco ficavam para trás. Apenas o alto da colina e sua árvore seca ainda preenchiam sua visão.




- Qual é o problema?

Elaine ergueu os olhos na direção da pergunta, exibindo as olheiras e o rosto cansado para a outra.

- Nada Lilian, eu só não dormi bem esta noite. Os contratos estão prontos?

Sem tirar os olhos da amiga, ela abriu a pasta que carregava e tirou um calhamaço de papéis, enquanto respondia – Aqui estão, todos em ordem. Elaine, se você não está bem, vá para casa, pro médico ou coisa que o valha. Aliás, você já não está com férias vencidas? Deveria descansar, não parece muito bem.

- Eu estou bem, foi só uma noite de pesadelos. Isso acontece com todo mundo alguma vez, não? – a jovem guardava os contratos em sua gaveta e arrumava os longos cabelos loiros – Eu preciso apenas tomar um copo de leite morno antes de dormir.

O rosto moreno de Lilian não perdeu o tom preocupado, mesmo enquanto esta se afastava.

- Bem, se você diz. À propósito, o Eduardo pediu para você dar uma ligadinha no ramal dele. Qualquer coisa sobre o convênio – piscou maliciosamente e sorriu de leve, enquanto deixava sua baia.

Elaine sorriu bufando enquanto tirava o fone do gancho e discava sem olhar para a lista de ramais. Uma voz masculina em tom apressado atendeu:

- Desenvolvimento dois, Eduardo.

- Sou eu, Eduardo, a Elaine do RH.

- Ola, Nani! Tudo bem? – a voz indicava claramente o sorriso do interlocutor – A Lilian passou o recado, né?

- Sim, passou. Sua renovação do convênio médico está pronta, eu te mando via office-boy interno, ok?

- Obrigado, Elaine. Mas eu espero não precisar dela tão cedo – ambos riram – Mudando de assunto, você vai conosco jogar boliche sexta à noite, não vai?

- Ah, bem... – a jovem folheou uma agenda de capa preta sobre a mesa – desculpe, Edu, mas não vai dar. Eu prometi levar minha sobrinha ao cinema nesta sexta. Fica pra uma próxima...

- Tudo bem, a gente marca com a galera outra hora – o tom era levemente menos animado. – Bem, obrigado pela ajuda, eu preciso desligar agora. A gente se vê no refeitório.

- Ok.

- Tchau!

- Tchau.

Elaine recolocou o fone no aparelho enquanto contemplava com expressão indecifrável as linhas vazias na página branca da agenda.

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Relâmpagos distantes iluminavam o céu enegrecido, gerando um macabro jogo de luz e sombra contra as pesadas nuvens negras que já tomavam metade da abóboda celeste. A lua minguante já havia mergulhado por completo na tempestade que se avizinhava. O sibilo do vento tornava-se maior, como uma canção infernal que lhe machucava os ouvidos. A árvore seca ainda estava longe, no alto da colina escura, enquanto a criança caminhava em sua direção. Seu semblante era duro e frio como o mármore das lápides que passavam. Uma lágrima rolou por sua face, indo regar o solo úmido que deixava para trás.

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O suor frio e a respiração ofegante eram as únicas sensações que passavam pelo corpo de Elaine antes que ela se desse conta do lençol de linho branco, o travesseiro, a cômoda que aninhava um despertador na forma de um ursinho e as cortinas rendadas que deixavam as luzes de umas poucas estrelas iluminarem seu rosto.

Levantou-se. O leite em seu estômago ainda pesava, e ela caminhou até a cozinha. Tomou dois copos de água. Na volta, deteve-se diante dos porta-retratos sobre a prateleira do corredor. Olhos brilhantes ardiam em súplica diante da maior das fotos. Virou-se lentamente de volta ao seu quarto.

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- Elaine, espere um pouco, eu preciso falar com você!

Os longos cabelos lisos da moça pareciam dançar com o vento quando esta se deteve no estacionamento. Lilian aproximou-se enquanto terminava de vestir seu casaco.

- É verdade que você disse ao Edu que não poderia sair conosco sexta?

- Bem, sim. Eu prometi à Aline que...

- Aline está viajando a Porto Alegre. Ou esqueceu que sou sua amiga do peito?

- Lilian, eu...

- Você nada, menina! Você vai é ouvir, agora! Poxa, o Edu tá dando a maior bola para você e você nada? Ele é um gato, com pedigree e tudo! Eu, pessoalmente, daria qualquer coisa por alguém como ele.

Elaine semicerrou um olho numa expressão maliciosa – Qualquer coisa? – Lilian sorriu amarelo:

- Tá bom, quase qualquer coisa! Mas essa ainda não é a questão. Você está jogando uma chance de ouro no lixo. O que está havendo, Elaine? Anda tão distante nos últimos tempos... não é, por acaso, por...

- Lilian, você está de ônibus hoje, não? Não quer ir comigo visitar Jasmim, e depois eu te deixo em casa?

Lilian suspirou.

- Nani, você não pode continuar sofrendo. Eu sei o quanto foi duro para você, mas ficar assim não vai ajudar...

- Lilian, vai vir comigo? - Elaine abrira a porta de seu carro, sem parecer dar atenção à amiga. Lilian assentiu em silêncio e entrou no carro. E esse silêncio perdurou todo o trajeto, sem que ao menos uma das duas tomasse qualquer iniciativa, sequer ligar o rádio.

O Corsa cinza estacionou em uma vaga em frente ao longo e maltratado muro branco do cemitério. Enquanto Elaine terminou de trancar o carro e ligar o alarme, Lilian caminhou até uma das barracas junto à entrada. Quanto foi alcançada pela amiga, exibiu-lhe uma única rosa branca envolta em papel decorado.

- Sei que são suas favoritas – sorriu Lilian.

- Eram as favoritas de Jasmim, também – sorriu em troca. Caminharam cemitério adentro.

Detiveram-se em um túmulo logo na primeira quadra. Como em um ritual, Elaine murmurou o epitáfio na lápide de mármore.

- “Jasmim do Campo Limeira, 1987, 1999, filha querida e irmã amada. Descanse em paz, com os anjos.”

Lilian esboçou uma reação, mas desistiu. Permaneceram longos minutos em silêncio, até que Elaine depositasse delicadamente a rosa junto à lápide.

Um frio percorreu sua espinha ao olhar de relance ao fundo e deparar-se, ao longe, com uma colina familiar, atrás dos jazigos mais distantes, e uma grande árvore seca em seu topo.

- O que foi?

- Ah... nada. Vamos embora daqui, eu não estou muito legal...

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Os lábios rosados mal se mexiam, apenas se separando durante breves segundos para que a menina respirasse melhor com o esforço. Seus olhos azuis pareciam faiscar a cada relâmpago, mas o brilho em seu olhar pertencia ao alto da colina. O estrondo ensurdecedor de cada trovão tomava o papel principal na funesta canção dos sibilos do vento. Os primeiros respingos da tormenta escorriam por seu rosto, seus cabelos e sua túnica. A claridade de cada relâmpago exaltava os contornos da grande árvore seca e lhe mostravam uma forma menor mais adiante, outrora oculta pela colina. A criança finalmente alcançara o topo, o vento sibilando mais forte, os relâmpagos mais rudes e os trovões insuportáveis. E ela finalmente vislumbrou a outra forma junto à árvore.

Uma cova.

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Elaine observava atentamente o fundo do copo, os resquícios de leite junto aos cantos. Lentamente levantou-se, deixando o copo vazio sobre a mesa, e caminhou de volta ao quarto.

No caminho, deteve-se diante da grande foto de Jasmim na prateleira. O sorriso da doce criança infligia ternura e sofrimento no coração de Elaine. Deu às costas e retornou a lenta marcha pelo corredor. A garotinha lhe fitava com suplicantes olhos azuis, parada diante da porta de seu quarto, a longa túnica branca esvoaçando ao vento leve do ambiente.

Um grito seco, baixo e esganiçado subiu-lhe garganta acima. Abriu os braços, recuando, esbarrando nos objetos do corredor. Ofegava. Sentiu o coração disparar e subitamente parar durante um segundo. E tudo acabou.

A visão revelou-se nada mais que um lençol branco preso à maçaneta da porta, balançado levemente pelo vento que provinha de seu quarto. Seu coração começava a bater mais devagar, quase normalmente, e o ofegar novamente tornou-se um respirar, ainda que carregado de uma emoção indefinível. Elaine finalmente voltou a seu quarto e adormeceu, com uma lágrima escorrendo lentamente de seus olhos para pousar lentamente em seu travesseiro.

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- Elaine, você está quase duas horas atrasada!!

- Desculpe, senhora Moreira, eu tive alguns problemas com meu despertador. Eu vou compensar hoje.

Os olhos vívidos, porém lúcidos da outra deixaram de lado o tom autoritário a favor de uma postura mais atenciosa.

- Não estou preocupada com as horas que você trabalhou, e sim com você mesma. Você tem andado abatida demais nos últimos dias, e Lilian me disse que você anda dormindo mal.

- Eu estou bem, só um pouco cansada...

- Não, você não está bem, isso está estampado em seu rosto. Qual o seu problema, Elaine? É sua irmã, não é? – a outra virou a face – Oh, desculpe querida. Eu sei o quanto isso é doloroso, já passei por isso antes e certamente passarei de novo – colocou a mão em seu ombro – e sei que guardar isso para si mesma não vai ajudar em nada. Você precisa se abrir com alguém, menina. Se quiser, eu posso te marcar um horário com a psicóloga da empresa. Ou, melhor ainda, você poderia tirar suas férias, que já estão em tempo – Elaine fez uma cara de desaprovação – Ora, mocinha, não me venha com essa! Você precisa disso, e nós já estamos quase na ilegalidade por sua causa, sabia? – sorriu gentil. Elaine não conseguiu conter um sorriso em troca.

- Eu... vou pensar no assunto, senhora Moreira.

- E vai pensar em casa. Você está muito cansada, eu te libero por hoje, você tem muitas horas extras não-pagas.

- Senhora, com uma supervisora como você...

- Não, pense que estou amolecendo – interrompeu-a com um sorriso – A chibata está guardada para suas amigas – ambas riram amigavelmente. A supervisora se despediu e sumiu empresa adentro. Antes que Elaine terminasse de arrumar sua mesa, a figura curiosa de Lilian se aproximou.

- Lilian, você...

- Não diga uma palavra, foi para seu próprio bem. Vá para casa e descanse. Reconsiderou sobre hoje à noite.

- Eu... acho que vou ficar em casa mesmo. Eu te ligo amanhã. – a outra suspirou enquanto se afastava.

- Está bem, se você prefere assim... – ia embora quando, numa resolução súbita voltou para perto da amiga e falou-lhe em tom quase de súplica. – Elaine, pelo amor de Deus, reaja!! Você está se afastando de todo mundo! O Edu está quase entregando os pontos de tanto tentar sair com você! A sua mãe ligou para MIM, preocupada porque você não retorna as ligações dela. Você.... – baixou subitamente o tom de voz, como em desistência - ... costumava me contar seus problemas...

Elaine permaneceu calada, fitando tristemente a amiga. Eternos segundos se passaram, até que Lilian suspirou e foi se afastando novamente.

- Eu te ligo amanhã, amiga – sua voz estava carregada de emoção, quase um choro – e, por favor, reaja.

Foi-se embora. A outra terminou de juntar seus pertences e voltou para casa.

Mal entrara no apartamento e foi direto para a secretária eletrônica. Havia vários dias que não fazia isso e constatou doze mensagens. Todas de sua mãe. Chegou a erguer o fone do gancho e discar alguns números, mas desistiu antes de terminar. Sentia-se cansada. Foi até seu quarto e deitou sobre a grande cama de casal, sem ao menos despir-se. Uma série de imagens e sons dos últimos dias, meses e anos pareciam dançar em sua mente. Sua amiga Lilian. A grande foto sobre a prateleira. O estridente ruído de uma freada brusca. Rosas brancas. Um sorriso. Um choro baixo. A colina. Orações. Uma lápide de mármore branco. Um lençol branco. Uma árvore seca. Doces olhos azuis...

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A chuva não incomodava a menina, ainda parada na mesma posição. A luz de um relâmpago ocasional projetava a sombra da árvore seca contra o outro lado da colina, iluminando um grande descampado com apenas mais dois túmulos visíveis à distância. Mas a atenção dela era toda voltada para a lápide mais próxima, da qual lentamente começara a se aproximar. Uma grossa crosta de lama seca cobria o epitáfio, impedindo-a de lê-lo. Prostrou-se junto à peça de mármore, a lama sujando-lhe a túnica e umedecendo-lhe os joelhos. Os cabelos louros cacheados pingavam sobre o tecido branco. Gotas d’água misturavam-se a lágrimas em sua face. E os aquosos olhos azuis percorriam as letras, uma à uma, enquanto seus dedos pequenos e finos ajudavam a chuva a lavar a lama das letras de mármore. Pesarosamente murmurou a inscrição.

“Elaine do Campo Limeira”

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Um grito ecoou na noite.

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- STRIKE!!

Jorge voltou triunfante da boca da pista enquanto era cumprimentado pelos outros. Virou-se para Eduardo:

- Sua vez, Edu. Mas eu duvido que me alcance. Você tá meio fraco hoje, não?

- É, eu tô meio desanimado – disse Edu, indo em direção à pista. Mirava a bola quando a porta de vidro do salão foi violentamente batida, quase quebrada. Elaine corria em prantoroso desespero em direção à Eduardo e Lilian.

- Nani, o que aconteceu? – Edu deixou a bola no chão e abraçou carinhosamente a jovem.

- Amiga, o que houve? – Lilian amparava a amiga, tomando-lhe a mão. Elaine soluçava.

- Eu, eu... estava morta!! – soluçou – Minha irmã estava lá e... oh, meu Deus!!!

- Acalme-se, Nani...

- Edu, eu... – sentou-se, acalmou-se um pouco – Até este momento, eu estava morta. Eu amava-a tanto, quase como uma filha. E continuei querendo que ela vivesse por mim, e deixei eu mesma morrer. Era eu naquela lápide, não ela!

- Acalme-se, amiga, agora está tudo bem. Vamos Edu, me ajude a levá-la para casa. Lá você pode nos contar melhor tudo.

Os dois ajudaram-na a andar até o estacionamento enquanto os outros os observavam, juntamente com algumas outras pessoas que estavam no boliche.

A bola deslizara lentamente pela canaleta.

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A ensolarada manhã de domingo lançava uma luz clara contra a lápide de Jasmim enquanto três rosas brancas eram depositadas junto a ela. Elaine chorava, mas tinha um sorriso em sua face. Juntou os dedos aos lábios e mandou um leve beijo em direção daquela morada final.

Eduardo a abraçou carinhosamente e sorriu, beijando-a logo em seguida. Lilian aproximou-se de ambos, sorrindo gentilmente. Os três saíram juntos do cemitério.

Enquanto levava os dois amigos para suas casas, ela jurou para si mesma que iria viver cada dia, minuto e segundo intensamente, e que faria assim por Jasmim.

Deu uma última olhadela no cemitério enquanto passavam ao seu lado. Por cima do muro, notou a colina que vira anteriormente, no enterro de Jasmim, e a árvore seca em seu topo. Curiosamente, não havia nenhum túmulo próximo à árvore.

A compreensão veio súbita, seguida da ensurdecedora buzina do caminhão.

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