segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Conto: E Então Comecei a Chorar

Essa é uma história menos fantástica e mais emotiva - triste, para falar a verdade. Eu tomei certas liberdades com o processo médico de transplantes para atender a história.



Foi por acaso que eu ouvi aquela conversa, juro! Aliás, antes nunca tivesse ouvido.

Eu não tinha me dado conta que meu queixo estava caído. Já tinha ouvido falar da expressão de ter o chão roubado, mas achava que era um exagero, uma licença poética. Mas a sensação física era idêntica - o frio repentino na barriga, as pernas bambas, o desespero incondicional. Era a mais pura verdade, os poetas não mentiram.

Não lembro exatamente as palavras do médico. Tudo o que me vem à cabeça é "trauma toráxico", "coronária" e outras palavras soltas, mas de uma opressão sem par. O que eu precisava realmente saber veio em uma única frase:

"A única chance de seu irmão é um transplante de coração nas próximas horas."

Eu recebi a notícia como uma declaração implícita de óbito. Quantos meses ou anos alguém espera por um transplante sem ter o que fazer? Quantos já não deixaram este mundo sem nunca ter ouvido o telefone tocar com a ligação salvadora? Que chance Hélio teria em apenas algumas horas? O médico então me explica que casos assim ficam na prioridade da fila de órgãos e são atendidos antes de casos mais crônicos. Esperei um sopro de alívio acalentar-me, mas ele não veio - meu irmão ainda dependia de um doador. Quem poderia esperar que um surgisse exatamente naquele momento?

Papai e mamãe choravam compulsivamente, mas mesmo abraçada com eles as lágrimas não me vinham. Eu estava cheia demais de medo e desespero para deixá-las passar. Era como se estivesse fora do meu corpo, assistindo um filme de minha vida, como se eu compadecesse de sua mocinha, mas não tivesse a capacidade de chorar pela personagem.

Após meus pais se acalmarem um pouco, fui buscar algo para bebermos. Estava encolhida no canto do bebedouro enchendo a garrafa de água, feita uma ladra roubando gasolina, e foi aí que ouvi. O médico que sentenciara meu irmão conversava no corredor com um colega, sem se aperceber de minha presença.

"O rapaz do acidente do telhado está realmente muito mal. Nem sei quantas horas ele irá aguentar por um transplante."

"Pois talvez ele seja o sortudo da noite." - retrucou o companheiro de profissão. "Pois o rapaz do 645, aquele do derrame, lembra-se? Ele está com todos os sintomas de que vai ter morte cerebral - e é doador de órgãos. O Comitê muito provavelmente o escolheria para o procedimento e..."

Congelei por um tempo que não faço ideia de quanto seja. Foi como a pequena luz da saída de uma caverna sinistra. Meu irmão poderia viver! Poderia se salvar! Sentia o coração bater mais forte e minhas mãos úmidas. Foi quando percebi que a água se derramava da garrafa entre meus dedos.

Fechei a tampa com firmeza, descobrindo minha força novamente. Sabia que era errado se agarrar com tanta gana a um filete de esperança, mas era muito mais real e palpável do que tudo o que eu tivera até então. Voltei para aonde meus pais estavam perguntando-me se deveria compartilhar esse grão de esperança. Talvez não fosse prudente; afinal, essa esperança dependia...

...da morte de outra pessoa.

Havia me deixado contagiar tanto pela possibilidade de um transplante que ofusquei em minha mente a inevitável verdade. Não era uma salvação ou uma esperança divina; era um escambo. A vida de meu irmão pela de um desconhecido. Em um primeiro momento, me convenci que não havia nada demais em alimentar esperanças. Vidas iam e vinham todos os dias em todo o mundo; por que não poderia eu sentir algum alívio em saber disso? Pois afinal, se meu irmão não conseguisse, ele também poderia ser a salvação de outrém.

Entreguei a garrafa d'água à minha mãe e sentei com eles em silêncio. Guardaria o que sabia para mim por agora, pois não sabia como meus pais lidariam com essa informação. Eu mesma ainda não sabia como lidar, já que as palavras do médico ainda ecoavam em meus ouvidos. O "sortudo da noite" que poderia ser meu irmão. Ou sortudo seria o rapaz do 645, que viveria para desfrutar de seu coração? Sentia minha cabeça girar e girar e forcei-me a parar. Não era justo colocar as duas vidas na balança, eu não tinha o direito e o dever! Tinha que continuar rezando pela vida de meu irmão.

Tentei distrair a mente observando à minha volta. A sala de espera branca e limpa tinha algumas cadeiras, um revisteiro e uma televisão em volume baixo. Mas não tinha espírito para ler ou assistir nada. Começei a prestar atenção às poucas pessoas presentes naquela hora tão tarde. Um casal com uma expressão comum - não demonstravam tristeza ou alegria; um senhor de idade com uma expressão despreocupada, prestando atenção ao filme na televisão; uma senhora de meia idade com feições sonolentas, e uma moça com os olhos vermelhos, soluçando. Fiquei tentando imaginar quem eram, como tinha cada um deles ido parar naquele ambiente tão melancólico. Por quem cada um deles velava noite adentro.

Um médico se aproximou da sala de espera e toda minha angústia voltou como um relâmpago. Mas um certo alívio e uma pontinha de frustração me vieram ao me dar conta que não era o médico de meu irmão. Ele dirigiu-se à moça de olhos vermelhos duas cadeiras adiante. É singular como a curiosidade humana se manifesta em qualquer momento - pois mesmo em meio ao universo de angústia e pavor, não pude evitar o comichão de saber os motivos da presença dela, quem ela aguardava. Percebi seu olhar tornar-se profundo e seus dedos agitados. Fez menção de levantar mas o médico a deteve com um gesto começou a conversar com ela em voz baixa, mas naquele ambiente calado mesmo o mais singelo sussurro ressoava. E meu estômago deu um pulo novamente.

Era ele, o colega do doutor que mencionara o possível doador. Eu jamais esqueceria aquela voz, ou confundiria com qualquer outra neste mundo. A mesma sensação de esperança vaga daquele momento no bebedouro me atingiu novamente. Mas as palavras dele à moça foram de um impacto diferente para mim.

"Seu marido ainda não apresentou nenhuma mudança significativa, senhora. Ele não está fora de perigo, o derrame foi muito devastador. Ainda há esperança, mas não vou negar que a senhora deve estar preparada."

Ouvi a moça murmurar algo, mas já não tinha condição nenhuma de prestar atenção em palavras. Eram só seus olhos que me prenderam a atenção. A íris marrom escura que parecia transbordar de tristeza, o branco avermelhado de seus contornos úmidos, a maquiagem, o brilho da sala refletido em suas lágrimas.

Pois eu sabia que seus olhos eram como os meus naquele momento. Tinha certeza que ela zelava pelo paciente do quarto 645, sua esposa. O homem que compartilhava o mesmo fio de vida que meu irmão.

Muita coisa se passou na minha mente nos momentos seguintes. O choque de conhecer o poder da vida e da morte. Pois era algo muito diferente de receber um transplante de um desconhecido. Mesmo naqueles bonitos programas de televisão aonde famílias de doadores e transplantados criavam laços não havia algo parecido com essas situação. Não havia minha gratidão, pois não havia certeza da salvação; não havia caridade da parte dela pois ainda havia esperança. Eramos adversárias.

Me envergonho de pensar assim, mas não posso mentir, esse foi o sentimento seguinte: raiva. Tinha raiva dela, algo que não consegui controlar. Pois seu marido detinha o poder de salvar a vida de meu irmão, ou tirá-la. Era um pensamento planejado e irracional. Como podia pensar assim? A vergonha por pensar assim seguiu à raiva, uma vergonha imensa, como seu eu tivesse cometido um crime terrível ao expressar aquela raiva. Eu não tinha o direito àquele sentimento - pois ela sofria tanto como eu. Senti uma imensa pena dela passar por isso, eu sabia como era aquele sentimento. Mas não conseguia abandonar a esperança de salvação de meu irmão. Nem a raiva. Nem a vergonha. Tampouco a compaixão.

O médico se retirou e a moça voltou-se na minha direção, percebendo meu olhar. Esta visada direta foi como uma conexão instantânea. Eu quase pude sentir toda a angústia, frustração e medo dela, e tenho certeza que ela se apercebeu dos meus. Ela assentiu levemente com a cabeça e eu repeti o gesto e desviei o olhar. Meu círculo vicioso de sentimentos teve um acréscimo neste momento: inveja. Pois ela não sabia o que verdadeiramente ocorria, era alheia ao dilema moral que consumia minha alma.

Não pude e nunca poderei precisar o tempo que se passou. Talvez tenha sido meia hora, talvez a madrugada inteira. Mas para mim foi como uma eternidade de sofrimento. Era como a pena de um crime, e talvez o tenha sido: o crime de saber o que não devia. Havia quebrado involuntariamente as regras que permeiam todo o processo de um transplante - mas voluntário ou não, a punição contra minha alma era rígida e implacável. Racionalmente pensando, o fato de eu não ter controle sobre o resultado deveria amenizar um pouco meu dilema. Mas a verdade era o oposto; o fato de eu não poder fazer nada só piorava. Pois eu tinha o conhecimento e nada para fazer com ele. E mesmo que por um milagre eu pudesse, o que faria? Salvaria meu irmão? Não seria justo com o homem do 645 ou sua esposa. Ele tinha tanto direito de viver quanto ele. Mas e meu irmão? Salvaria um estranho e permitiria que alguém que me era caro se fosse? Não conseguia nem mesmo mais rezar pela salvação de meu amado irmão. Pois sentia que era o mesmo que torcer pela morte daquele homem e o sofrimento indescritível de sua amada.

E eu me prendi a esse ciclo como um homem se agarra à própria vida. Estranhamente, eu desejava que ele não acabasse, pois o final não haveria de ser feliz. Eu estava ligada demais àquelas duas vidas para permitir que qualquer uma delas terminasse. Por mim, aquela noite duraria até o fim dos tempos, mantendo a luz de vida e esperança acesa.

Mas toda a luz um dia se apaga, toda noite se segue de um dia e aquela tinha que acabar. Eu juro pelo que há de mais sagrado que eu ouvi os passos do médico, como o cavalgar do Quarto Cavaleiro do Apocalipse. Algo dentro de mim que estivera enjaulado até então forçou passagem. Vi no fim do corredor a figura alta de branco se aproximando com o andar pesado com as notícias que carregava. Não conseguia identificar qual dos médicos se aproximava, o de meu irmão ou o do outro homem - pois meu olhos estavam cheios e pesados.

Finalmente, reconheci qual era o médico. E então comecei a chorar.

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