quinta-feira, 24 de março de 2011

Conto: Reflexões - Parte 003

Terceira parte da história. Algumas explicações




Entrei em casa finalmente e joguei as chaves do carro na mesa de centro, sem acender a luz. A chave acabou escorregando e indo parar no chão, de tanto que eu ainda tremia.

Desabei no sofá e conferi meu relógio de pulso. Meia-noite e quarenta e cinco. Num dia normal já era pra eu estar na cama de velho, mas tava pouco me fudendo pra isso. Certeza que não ia trabalhar no dia seguinte - o Rei disse que ligaria avisando do acidente e do assalto. E duvido que ele fosse além disso.


Estava louco por uma cervejinha, mas não tinha vontade mais de levantar. Faltava-me forças até pra repassar mentalmente o que aconteceu poucas horas atrás. Mas também não tinha como tirar aquilo da cabeça.

Devo confessar que não caguei nas calças na hora que vi o Rei daquele jeito por pura sorte. De alguma forma bizarra, tinha imaginado se uma dessas merdas de superhumanos não tinha transformado o Rei numa estátua de ferro. Então ele começou a caminhar em direção aos marginais e meu mundo desabou outra vez: o Rei é que era uma merda de superhumano.

No momento que ele começou a andar, os nóias - que pareciam ter ficado caretas como que por milagre - ergueram as armas e descarregaram tudo na direção do Rei. Tremendo como vara verde, me abaixei, e não vi o que aconteceu, mas ouvi uma série de pancadas secas, cada um seguida de um tilintar. Umas das balas deflagradas rolou lentamente até meu cotovelo, a ponta completamente achatada.

Alguns segundos depois, ouvi passos rápidos. Os bandidos saíram correndo em um desespero insano em direção a uma viela próxima. Passaram-se alguns segundos de um silêncio estranho e, em meio à explosão de adrenalina, eles pareceram de alguma forma reconfortantes. Como se uma vida inteira de paz e tranquilidade num mundo muito distante passasse em alguns segundos dentro da minha mente. Muito tempo depois, fui me dar conta que eram as lembranças de minha própria vida até aquele momento.

O Rei se aproximou de mim, cada passo soando como um torno caindo de alguns centímetros de altura no asfalto.

- Mateus, cê tá legal? Se machucou? - disse ele, a voz soando como se atravessasse um longo cano de metal, mas ainda assim soando com um genuíno tom de preocupação.

- Caralho, Reinaldo!!! Que porra é essa?!? Que merda aconteceu? - estava tão nervoso que poderia ter entrado em combustão espontânea fácil, fácil naquele momento; mas acho que o peso do ocorrido era tão grande que eu não consegui soltar mais do isso antes de perder a fala.

Num piscar de olhos o Rei voltou ao normal e emendou, estranhamente calmo - Eu juro que também gostaria de saber.

Nisso ouvimos sirenes no começo da rua; uma viatura da polícia que estava na rua de trás veio averiguar o tiroteio. Minha memória borra um pouco nesse momento - eu até hoje não sei se foi sorte os policiais não terem encontrado as balas achatadas no chão ou se o Rei fez alguma outra bruxaria pra elas sumirem. Tudo o que eu lembro é que o Rei contou da armadilha e do assalto - mas disse que eles dispararam pro alto e depois correram. Eu só conseguia concordar com a cabeça até então - os canas não fizeram muito caso comigo, perceberam meu estado. Mas tivemos que ir com eles até a delegacia pra fechar o boletim de ocorrência.

Meu carro, apesar de amassado e o para-brisa estilhaçado, ainda funcionava, então acompanhamos a viatura, que seguia devagar.

Insisti pra dirigir, à despeito das reclamações do Rei, porque queria ocupar a cabeça. Tinha vontade de explodir em perguntas para o meu colega, mas as palavras simplesmente não saiam, e a viagem foi silenciosa.

Algumas horas de chá de cadeira, descrições enfadonhas de fatos agitados e algumas consultas do policial de plantão ao dicionário, saímos de lá cada um com um papel timbrado e os nervos em frangalhos. Já mais calmo, voltei ao volante sem protestos e uma nova viagem quieta. Senti que o Rei esperava que eu começasse a perguntar, mas ainda não tinha digerido tudo o bastante pra dirigir e abrir a boca ao mesmo tempo. Mas quando finalmente cheguei na esquina do prédio do Rei, desliguei o motor e puxei o freio de mão.

- Reinaldo, há alguma explicação pra essa merda toda? Que diabos aconteceu lá?

O Rei me olhou profundamente , suspirou e começou:

- Se você quer dizer um "por quê" disso, eu tô até hoje tentando encontrar. Tudo o que eu sei é que um dia eu acordei duro feito um pau.

"E eu não tô exagerando, Veríssimo. Eu acordei no meio de uma noite e não conseguia mover a porra de um dedo. Nem os olhos eu conseguia abrir. Tentei gritar e eu só senti cócegas na garganta. Estava me cagando de medo de estar tendo um troço e então comecei a fazer muita força. Aí a sensação parou um pouco e eu consegui erguer as pálpebras. Bosta, antes não tivesse aberto."

"A merda do meu corpo inteiro era de madeira. Te juro cara, madeira pura! Eu via os veios da madeira pelos meus braços, a textura do troço aonde devia tá a minha carne! Tentei me mexer mais e percebi que conseguia, mas só com um esforço do caralho. Levantei da cama com uma dificuldade do inferno e caminhei até o banheiro. Porra, eu ouvia minhas juntas estalando como se fossem móveis velhos! Aí me olhei no espelho da pia. Até minha cara era madeira! Até os olhos! Eu tentei gritar de novo e dessa vez saiu um gemido de dar medo. Eu sei lá quanto tempo eu fiquei olhando pro espelho, tentando entender o que diabos aconteceu. Eu fiquei tentando me lembrar como era minha cara antes daquela merda toda e então, puft! Estava lá de volta meu rosto e meu corpo. Dessa vez eu acordei os vizinhos com o grito. O cara do apê de cima bateu na porta pra ver o que tinha acontecido, e eu disse que tinha tido um pesadelo batido o pé na cama. Quase contei tudo e ia pedir pra me levarem pro hospital, mas me contive. Fiquei lembrando daquele monte de merda que acontece com os mutantes - especialmente os boatos apavorantes da época da ditadura militar. Ele insistiu um pouco, mas então se foi."

"Isso podia ter passado por um pesadelo maluco se eu tivesse conseguido pregar os olhos de novo. Fiquei sentado no sofá olhando pras minhas mãos, esperando pra ver se elas não iam virar madeira de novo. Eu não fazia a mais puta ideia do que fazer, não queria procurar um médico. Não sabia pra quem recorrer. Pensando no tinha acontecido, me convenci que fosse algum superhumano ou super-qualquer-merda que tivesse passado por ali e que talvez aquilo não se repetisse."

"E claro que uns dias depois a merda aconteceu de novo. Eu tava fazendo a barba dessa vez. Em um certo momento eu limpei a lâmina descartável do barbeador e vi o reflexo da luz. Dessa vez eu senti algo acontecendo antes. Não sei como descrever o que eu senti, foi como se eu soluçasse e peidasse ao mesmo tempo, mas pra dentro e com o corpo inteirinho. E quando olhei de novo no espelho, meu corpo era de metal, refletindo meu reflexo no espelho. O susto foi grande, mas talvez por já ter acontecido, eu segurei o grito. Lembrei do que tinha acontecido da outra vez e tentei me lembrar como eu era antes, e voltei ao normal. Eu tava controlado agora, mas com um cagaço danado: que quer que fosse essa porra, não ia passar."

"Eu passei alguns dias treinando esse troço, pra me controlar. Tinha dado uma sorte dos diabos dessas mudanças só acontecerem enquanto eu estava sozinho. Deus sabe que pandemônio ia ser se isso tivesse acontecido no trampo ou no meio da rua. Percebi que eu podia mudar meu corpo pra qualquer material que olhasse, mesmo de longe. Tentei madeira de novo, metal.. fiz o troço com o carpete e achei que ia desabar. Nunca tive coragem de tentar com água. É meio como se eu pudesse refletir o que aquele material fosse, como se eu fosse um espelho, sei lá. Só sei que eu aprendi a não me transformar sem querer. E é isso."

- Peraí, Rei, como assim "e é isso"?! Cê tá me dizendo que você de repente descobre que pode virar o Homem de Lata e simplesmente fica de boa? Não faz nada?

- E o que cê queria que eu fizesse, porra? Botasse uma daquelas roupinhas de boiola e saísse por aí espancando ladrão? Eu não sou retardado não, cara! Eu sei que tem gente bacana que usa essas porras pra melhorar o mundo e tal, mas vê bem que a maioria desse pessoal só se fode. E, de boa, nada me tira da cabeça que pelo menos metade dos sujeitos que viram vilões e se fodem mais ainda eram gente tão comum quanto eu e você. O cara de escovinha lá nos states não espalhou pra cima e pra baixo que o Aranha era vilão quando apareceu? Cê só precisa espirrar fora de hora pra te apedrejarem.

Nunca tinha visto o Rei falar tão apaixonadamente de algo. Era um lado dele que não dava imaginar que existisse. Continuei, assustado.

- Mas e a sua saúde, caralho? E se essa merda tiver virando tuas tripas por dentro? Você podia procurar ajuda. Tem gente que entende dessas maluquices. O cara do Quarteto, o Reed Richards, é o primeiro da lista - e todo mundo sabe que ele é gente boa.

- Gente boa talvez, mas ele tem cara de proctologista frustrado. Vai saber que diabos ele ou qualquer outro ia fazer comigo. Eu já tenha essa merda faz dez anos, Veríssimo. Se era pra ter acontecido algo, a essa altura já tinha.

- Mas... Então você não quer ajudar ninguém, nem tirar proveito disso. Que raios você faz com isso? Nada?

- Exatamente, nada. Veríssimo, eu tenho tudo o que eu quero, cara. Tudo bem que ganhar na Mega-Sena ajudava pra cacete, mas não tenho do que reclamar. Tenho minha casa, visito meus pais, tenho meu emprego e divido uma cervejinha com os amigos de vez em quando. Tem muita gente no mundo que mataria pra ter isso. Eu não pedi por essa porra desse poder, só aconteceu. Pra mim é como uma verruga, não mexe com minha vida e eu não mexo com ela. E cara, por favor não espalha isso pra ninguém. É tudo o que eu te peço!

Não havia muito o que falar depois disso. Nos despedimos e o Rei desceu em silêncio com o semblante de sempre, como se nada tivesse acontecido. Mas antes dele entrar na portaria do prédio, eu ainda falei para ele pelo buraco no para-brisa.

- Só sei de uma coisa: essa merda dessa verruga me salvou a vida hoje.

Nenhum comentário:

Postar um comentário